quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Crônica: De mãos dadas com travestis: segurança pública e diversidade sexual

Crônicas

De mãos dadas com travestis:
segurança pública e diversidade sexual

“Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria, do que eu quisesse ter. Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é o que me faz viver.
(Gilberto Gil “Superhomem, A canção”)

No momento em que o Departamento de Identificação começa a entregar as primeiras Carteiras de Nome Social – documento através do qual travestis e transexuais podem usar o nome que adotaram e pelo qual são tratados no seu dia-a-dia – uma reflexão sobre a relação entre segurança pública e a diversidade sexual se impõe. Como servidor público e pesquisador em Antropologia social sou testemunha que nas últimas duas décadas esta relação sofreu uma metamorfose importante: num primeiro momento a arbitrariedade e num segundo o reconhecimento.
No início da década de noventa, eu fazia plantões na área judiciária do Centro de Operações da Polícia Civil, ali na esquina da Ipiranga com avenida João Pessoa. Era comum, naquela época, no meio da madrugada, estacionar no pátio do Palácio da Polícia viaturas lotadas de travestis que, sem nenhuma acusação formal, eram trazidos para serem identificados e passavam a fazer parte de um arquivo de eventuais suspeitos de algum crime que, quem sabe, um dia poderiam vir cometer. Eles eram fotografados, tinham seus dados biográficos e onomásticos anotados e suas impressões digitais tomadas para depois serem liberados já ao amanhecer do dia.
A sessão de identificação durava a noite toda, era mais um ritual de humilhação na qual me sentia ridículo em fazer parte. Contudo com o decorrer da noite, íamos conversando e desconstruindo paulatinamente o roteiro. Mesmo sendo vítimas da intolerância da lei e dos seus agentes (e eu era inicialmente visto como um deles), conseguíamos transformar aquele infortúnio em um momento de troca de informações e de relatos que, muitas vezes, chegava a descontração. Os policiais que as traziam logo iam embora e me deixavam responsáveis pelo grupo, deixavam junto uma relação com o nome de todas que deveriam ficar aguardando, pois depois a lista seria conferida com as identificações. Quem não aparecesse na lista, na próxima vez ficaria presa, faziam questão de ressaltar os policiais.
Cada uma que era identificada poderia depois ser liberada, mas a maioria ficava até o final, umas esperando pelas outras. Algumas vezes, a fome assolava o grupo e vinha a solicitação para se dirigirem até um trailer próximo. Arrecadavam dinheiro e duas ou três iam para buscar um xis, um cachorro quente ou até um churrasquinho de gato para o resto do grupo. Eu permitia que saíssem, com a promessa que voltassem para fazerem a identificação o que sempre acontecia, pois além do medo, elas saíam com o dinheiro das outras que ficavam aguardando o lanche. Quando retornavam, o ritual de humilhação se transformava num picnic, a música era por conta da casa, eu sempre trabalhava com um rádio ligado! Não creio que naquelas noites, alguma não tenha voltado, mas se isto aconteceu não houve perda, pois tal atividade de identificação era ilegal e foi abolida, ainda nos anos noventa, acredito que como conseqüência da aprovação das novas constituições federal e estadual.
A cada madrugada de plantão mudavam as travestis, mas algum tipos se repetiam; havia as mais irritadas – talvez aquelas que intuíssem a ilegalidade da ação – e que, quando os agentes da lei que as trouxeram se retiravam da sala, passavam a xingá-los. “Ratos filhos da puta”, “ratos provalecidos”, “e ainda tomaram meu dinheiro” etc. etc. Mesmo sendo eu o responsável de fato pela identificação (eu que tirava foto, tomava as impressões digitais e os dados biográficos), em poucos minutos elas passavam a me tratar como se eu nada tivesse a ver com aquilo; me tratavam com respeito e até alguma solicitude.
Tinha as mais exaltadas para as quais eu solicitava ajuda, pois a identificação envolvia muitas fichas e era necessário dobrá-las e colocá-las em ordem. Eu explicava e elas me ajudavam, assim o serviço andava mais rápido; com isso elas colaboravam com sua própria estigmatização. Não fiz amizades, nem nunca encontrei qualquer uma delas posteriormente, mas varamos madrugadas conversando, fazendo lanche e, principalmente, envolvidos numa relação de respeito na qual elas entendiam que eu estava fazendo meu serviço e eu procurava tornar mais leve aquele momento.
Quando os policiais, envolvidos em outras ocorrências cruzavam pela porta da sala da identificação criminal e me viam fazendo a identificação, não se continham e o deboche era certo: “e aí de mãos dadas com os travecos, não vai se apaixonar heim”. Naquela época era necessário, para efetuar a identificação, segurar na mão da pessoa e pintar os dedos com tinta de impressão, nesta tarefa, além de mãos dadas ficávamos face a face, olho no olho. Em tal posição, mesmo por poucos minutos, duas pessoas compartilham um momento de aproximação e uma dose ínfima de intimidade.
Mas o tempo passou, e hoje as coisas mudaram significativamente. A identificação monodactilar para alimentar o arquivos com prováveis suspeitos não existe mais e as minorias sexuais, dentre outras, passaram a ter mais respeito e atenção do poder público, com novos direitos conquistados. A Carteira de Nome Social é uma deles. É certo que sempre haverá aqueles que vão se pronunciar dizendo que o estado tem coisas mais importantes a fazer do que dar “carteiras a veados” expressão que já ouvi mais de uma vez. Mas não me surpreendo, pois na época da abolição da escravatura também havia aqueles que entendiam que o país tinha coisa mais importante a fazer do que libertar os escravos.
Na realidade, a adoção da Carteira de Nome Social só complemente o decreto nº 48.118 de 27 de Junho de 2011 que “ Dispõe sobre o tratamento nominal, inclusão e uso do nome social de travestis e transexuais nos registros estaduais relativos a serviços públicos prestados no âmbito do Poder Execituvo Estadual”. Por este decreto todo o servidor público, no âmbito do Poder Executivo, deverá se dirigir as travestis e transexuais pelo seu nome social. Por fim a CNS foi criada pelo Decreto 49.122 de 17 de maio de 2012 e coube ao Departamento de Identificação torná-la realidade.
Concordo, também, que o estado tem coisas mais importantes para realizar além de legislar para promover o respeito e o direito da diversidade sexual, mas da mesma forma acredito que quando atitudes simples como esta da criação da CNS são possíveis de serem implementadas, o poder público não deve se eximir. Pessoalmente, em véspera de aposentadoria, me regozijo de estar vivendo este momento em que a relação entre segurança pública e diversidade sexual segue novos rumos. Me orgulho de poder participar como chefe da Seção de Identificação Civil da efetivação do processo de criação da CNS, do processo de reencontro do poder público com a cidadania e que, de certa forma, me absolve da violência simbólica que ajudava a perpetrar há duas décadas atrás.

Autor: Celso Dias nasceu em 30 de novembro de 1958 em Porto Alegre onde vive desde então. É graduado em História e Mestre em Antropologia Social na UFRGS tendo feito também doutorado em Comunicação Social na PUC.  Professor e servidor público do Instituto Geral de Perícias, ele escreve contos desde a década de noventa sem nunca  haver publicado.

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